A CPMF e as garantias do cidadão contribuinte

A CPMF E AS GARANTIAS DO CIDADÃO CONTRIBUINTE

Vera Carla Nelson de Oliveira Cruz•
A Carta Constitucional em vigor, em seu art. I’, caput, proclama que “a República Federativa do Brasil, formada pela união in-dissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito … “. Assim, erige, como sua nota mais marcante, o status de Estado Democrático de Direito, o que significa, a consagração, na relação Fisco – Contribuinte, não de um poder de tributar, mas do exercício limitado e democrático da competência tributária, entendida esta como a faculdade deferida ao Estado para instituir tributos, dentro dos limites das garantias sociais e individuais deferidas ao Cidadão – Contribuinte.
Deve; assim, o Estado Impositivo, atentar para os chamados “princípios vetores da tributação” – legalidade (inclusive quando qualificada), anterioridade, irretroatividade impositiva, igualdade, capacidade econômica, uniformidade e outros -, bem como para as limitações consagradas no Texto Organizacional, quais sejam, as imunidades, a vedação de tributo confiscatório ou proibitivo ou mesmo limitativo do tráfego de pessoas ou bens, a proibição de bis in idem, e outras, sob pena de atuação frontalmente inconstitucional. .
Entretanto, para o perfeito entendimento desse corpo de princípios e limitações, é necessário que se defina a sua posição juridicamente relevante na Constituição. É que, consubstanciando um Estatuto de Direitos e Garantias do Cidadão – Contribuinte, deve ser observado não somente pelo legislador tributário infraconstitucional, mas também pelo constituinte derivado, já que constitui cláusula pétrea, na forma preconizada no art. 60, § 4′, IV, que dita:
“Art.60
(…) § 4º. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(. . .) IV – Os direitos e garantias individuais”.
Com efeito, a Constituição prescreve em seu art. 5º, § 2º, que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime ‘e dos princípi¬os por ela adota dos, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, denotando a coexistência, em nosso ordenamento, de princípios explícitos e implícitos, que se situam no mesmo plano jurídico. No caso dos direitos e garantias do Cidadão – Contribuinte, a previsão é expressa, não ensejando qualquer dúvida açerca da sua sobreposição constitucional, enquanto reserva material absoluta de reforma constitucional. Nesse sentido, em decisão lapidar, o STF já firmou sua orientação no sentido da intangibilidade dos direitos e garantias do Cidadão, em relação à competência tributária, ao apreciar a previsão contida no § 2º, do art. 2º, da Emenda Constitucional n’ 03/93, que afastou a aplicação do principio da anterioridade, na exigência do Imposto sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira – IPMF.
Tal questão, entretanto, renova-se com o advento da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Crédito e Direitos de Natureza Financeira. De fato, o recurso à criação desmesurada de novas fontes de custeio, de que tradicionalmente se valem nossas autoridades administrativas para equacionar os seus problemas de caixa, vai exigir, mais uma vez, em face da novel emenda
constitucional, que edita o art. 74 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a oportuna intervenção dos nossos juízes e tribunais, na condição de órgãos instituídos pelo Poder Constituinte como guardiões da Carta, circunstância que lhes impõe obrigações, dentre as quais se inclui o controle das cláusulas pétreas.
Efetivamente, a redação da reforma que se avizinha demonstra a renitência da conduta do Fisco Nacional e reafirma o “pouco caso” do Estado Brasileiro, no que pertine aos direitos e garantias do Cidadão – Contribuinte, na medida em que traz para a unidade da Constituição preceitos que atentam contra a imunidade prevista no § 5°, do art. 153, a garantia da forma qualificada da lei complementar e as limitações de vedação da técnica impositiva de cumulatividade e da ocorrência de bis in idem, todos com as¬sento no inciso I, do art. 154.
Estabelece, a esse respeito, o novo dispositivo:
“Art. 74. A União poderá instituir contri-buição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.
(…) § 2º. À contribuição de que trata esta artigo não se aplica o disposto nos arts. J 53, § 5º e 154. J, da Constituição. ”
O mencionado § 5°, do art. 153, da Lex Magna consagra a imunidade do ouro, como ativo financeiro, proibindo a incidência de ou¬tras imposições sobre o mesmo, a única exce¬ção do Imposto sobre Operações de Créditos, Câmbio e Seguro, ou relativas a títulos ou Va¬lores Mobiliários – IOF, devido na operação de origem. A opção do constituinte, nesse caso, é clara – não faculta outras incidências sobre as operações com ouro – dirigindo-se, exatamente, ao legislador das tributações residuais, como é a CPMF, o qual está, portanto, proibido de imiscuir-se na esfera dessa hipótese de incidência.
As imunidades são, consoante antes visto, essencialmente, garantias do Cidadão – Contri¬buinte, e, sob essa qualificação, não podem ser• olvidadas, mesmo pelo constituinte derivado, sem prejuízo de infringência no inciso IV, do § 4°, do art. 60, do Texto Constitucional. Assim, deve prevalecer a sua superposição constitucio-nal, como norma de estrutura, definida por Pau¬lo de Barros Carvalho como: ” a classe finita e imediatamente determinável de normas jurí¬dicas, contidas no texto da Constituição Fe¬deral, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de di¬reito constitucional interno para expedir re¬gras instituidora de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas. ”
Quanto às demais garantias repelidas na Emenda Constitucional em tela, têm previsão no inciso I, do art. 154, da Constituição, que prevê:
“Art. 154. A União poderá instituir:
I – mediante lei complementar. impostos não previstos no artigo anterior. desde que se¬jam não-cumulativos e não tenham fato gera¬dor ou base de cálculo próprios dos discrimi¬nados nesta Constituição;”
Trata-se das vedações estabeleci das em de¬fesa da rigidez da composição constitucional das rendas tributárias, como instrumentos de preservação da excepcionalidade da competên¬cia residual, que, nesse contexto normativo,

somente pode ser veiculada por lei complemen¬tar que observe a técnica da não cumulativida¬de e a proibição de repetição de imposto ou contribuição já configurado no sistema consti¬tucional (§ 4°, do art. 195).
Embora seja verdadeira a premissa de que as emendas constitucionais, no plano hierárqui¬co – normativo, agregam-se à Constituição, sem dela se desigualarem, não podem, como previa¬mente afirmado, fazer tábula rasa das cogentes cláusulas pétreas. Assim sendo, há juridicidade na assertiva, de que, mesmo possuindo o consti¬tuinte derivado legitimação para ampliar, as im¬posições tributárias, não pode, ao autorizar a instituição dessas novas exações, facultar que o Ente Competente o faça em prejuízo das garan¬tias que preservam a competência residual, como, presentemente, se verifica do teor do § 2°, do art. 74 do ADCT, a ser introduzido no bojo constitucional.
Aliás, nesse mesmo sentido, sinaliza a pró¬pria literalidade do texto da Emenda, que, ao versar sobre o regime da nova contribuição, ressalvou, expressamente, a não adoção das normas do art. 154, do inciso I, demonstrando que, apesar de admitir sua natureza residual, não se lhe deveria aplicar a disciplina do referi¬do dispositivo.
Não obstante o entendimento pessoal nessa direção, favoravelmente à existência de uma garantia do Contribuinte a um rol numerus clausus de impostos e contribuições, somente ampliável dentro das fronteiras da residualidade, registre-se a posição contrária do STF, com base na posição da nova regra de incidência em norma de status constitucional, ilustrada no seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Sidney Sanches, como relator, na ADIN 939 DF, litteris:
“Cumpre ser enfatizado que a instituição do IPMF não se deu com base na competência tributária residual da União nos termos do art. 154, inciso I. da Carta de 1988. mas sim, com supedâneo na Emenda Constitucional n° 3, de 1993.
Ressalte-se que, obviamente. o novo im-posto. discriminado por norma constitucional derivada, não precisa ser não-cumulativo, nem ter fato gerador ou base de cálculo distintos dos impostos que já eram previstos no texto constitucional original. ”
Ao final, diante das regras contidas nos pa¬rágrafos do art. 74, é de se observar que a lei integradora do preceito constitucional, que, na nossa visão, deve ser complementar, há de con¬signar a alíquota de vinte centésimos por cento (§ 1°); a delegação ao poder executivo para re¬duzi-Ia ou restabelecê-la, total ou parcialmente, nos limites nela fixados (§ 1″); a afetação de sua receita à Fundação Nacional de Saúde, para financiamento de ações e serviços de saúde (§
3°) e a vigência temporária da exação – prazo não superior a dois anos (§ 4°).
Com essas considerações, resta-nos lamentar a renovação de mais um tributo “provisório”, que, a prevalecer a cultura do Estado Brasileiro, em dissonância com os ditames demo¬cráticos da Constituição, continuará sendo lançado para robustecer as finanças públicas, sem¬pre que novas necessidades o justifiquem, a despeito dos limites de capacidade contributiva do Povo Brasileiro.
Aliás, para este, o capitulo constitucional do Sistema Tributário Nacional é uma caixa de Pandora, considerando-se o que dele o Governo tem conseguido extrair.

*Juíza Federal Substituta da 9ª Vara da Seção Judiciária do DF

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