4.1
CONSELHOS PROfISSIONAIS: OS VÍCIOS DA LEI 9.649, DE 1998
EUST ÁQUIO SIL VEIRA
VERA CARLA NELSON DE OLIVEIRA CRUZ
SUMÁRIO: I. Introdução – 2. Poder de polícia – 3. Competência tributária ¬4. Imunidade tributária – 5. Processo e competência – 6. Conclusão.
1. Introdução
Após sucessivas reedições, a medida provisória que dispunha sobre a organi-zação da Presidência da República e dos Ministérios foi convertida na Lei 9.649, de 27.05.1998, mantendo, em seu bojo, para nossa perplexidade, a privatização dos serviços de fiscalização das profis¬sões regulamentadas.
Diz o seu art. 58: “Os serviços de fiscalizações de profissões regulamenta¬das serão exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, medi¬ante autorização legislativa”.
Acrescentam seus §§ 1.º e 2.º “§ 1.º A organização, a estrutura e o funciona-mento dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas serão disciplinados mediante decisão do plenário do Conselho Federal da respectiva pro-fissão, garantindo-se que na composição deste estejam representados todos seus conselhos regionais.
§ 2.º Os conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas, dotadas de personalidade jurídica de Direito privado, não manterão com os órgãos da Ad¬ministração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico.”
Com essa disciplina, flagrantemente inconstitucional, desqualificam-se os en-
tes corporativos. Estes, que, na exegese do STF, sempre foram considerados autarquias, são expungidos da Administração Pública federal, como se o legislador, a pretexto de regulamentá-los, pudesse modificar sua própria natureza jurídica.
A norma é um contra-senso. De um lado, afirma que os entes são dotados de personalidade jurídica de Direito privado, que não têm vínculo com a Adminis¬tração Pública, mas de outro, conferelhes atributos inerentes à Administração Pública.
2. Poder de polícia
fissionais de exercer sua profissão, apli-car-lhes sanção, como se os referidos atributos pudessem, porque o legislador
disse, ser delegados.
A Constituição Federal, versando sobre a matéria, especifica a competência legislativa da União Federal para tratar do tema (CF, art. 22, XVI), a capacidade tributária dos entes corporativos (CF, art. 149) e a atuação reguladora do poder de polícia do Estado (CF, art. 170).
De seu plano, o CTN dota de oficiali-dade o poder de polícia (CTN, art. 78. par.ún.), estatuindo que somente as pes¬soas jurídicas de Direito público podem ser titulares de capacidade tributária ati¬va (CTN, art. 7.º, c/c o art. 119).
É de se concluir, portanto, que, embo¬ra a União Federal tenha competência legislativa para disciplinar o exercício das profissões, não pode usar desta fun¬ção para delegar o que não pode sê-lo. Como afirma José Cretella Júnior “é difícil definir a polícia. Podemos encontrar na definição de polícia vários elementos. Um é o Estado. Só o Estado é detentor do poder de polícia, só o Estado organiza a polícia. O poder de polícia é, pois, indelegável, intransferível”.
3. Competência tributária
O poder de fiscalizar emana do poder de polícia. Pressupõe, portanto, a exis-tência de atributos específicos deste, isto é, importa em restrições de direitos indi¬viduais em favor da coletividade (CTN, art. 78), requerendo, para o seu exercí¬cio. Discricionariedade, coercibilidade e auto-executoriedade.
Assim sendo, a regra em comento não teve apenas o condão de negar a qualida¬de de autarquia aos conselhos profissionais, mas, sem se deter aí, permitiu, inusitadamente, que particulares possam ingressarem estabelecimentos e interditálos, consultar-lhes os livros, proibir pro-
Mas se, apesar disso, prevalecer o en-tendimento de que o poder de polícia pode ser delegado em favor de pessoas jurídicas de Direito privado, os §§ 4.º, 6.º e 8.º do dispositivo legal em foco devem ser considerados inconstitucionais.
O § 4.º preceitua: “Os conselhos de fiscalização das profissões regulamenta¬das são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas físicas ou jurídicas, bem como preços de serviços e multas, que consti-tuirão receitas próprias. considerando-se
Manual de Direito administrativo, 5. Ed., p. 262-263.
título executivo extrajudicial a certidão relativa aos créditos decorrentes”.
O STF, no RE 138.284-8/CE e na ADC-IIDF, reconheceu a natureza tri-butária das contribuições parafiscais, re-ferendando a vontade constituinte de apli¬car os princípios tributários e as normas gerais de Direito tributário a essas impo¬sições (CF, art. 149).
Assim sendo, é absolutamente incons-titucional preceito de lei que, em prejuí-zo da referida norma constitucional. au-toriza os conselhos a fixar o valor de suas contribuições, violando o princípio da legalidade (CF, art. 150, I), bem como que lhes permita cobrá-las, ao arrepio das regras gerais constantes dos arts. 7.º e 119 do CTN, que reservam o exercício da capacidade tributária ativa às pessoas jurídicas de Direito público, in verbis:
“Art. 7.º. A competência tributária é indelegável, salvo atribuições das fun-ções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tri-butária, conferida por uma pessoa jurídi¬ca de Direito público a outra, nos termos do § 3.º do art. 18 da Constituição.
( … )
Art. 119. Sujeito ativo da obrigação tributária é a pessoa jurídica de Direito público titular da competência para exi-gir o seu cumprimento.”
Sobre esse tema, já se afirmou, equivo-cadamente, que o valor exigido pelos conselhos é preço público. Mas essa posi¬ção é facilmente refutável, já que existe compulsoriedade na sujeição do profissi¬onal ao conselho respectivo, nota caracte¬rística da prestação de serviços que auto¬riza a cobrança de tributos, consoante o STF: “Súmula 545. Preços de serviços públicos e taxas não se confundem,por¬que estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condici¬onada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu”.
4. Imunidade tributária
Seria, ainda, inconstitucional o § 6.º do art. 58, que preconiza: “Os conselhos de fiscalização de profissões regulamen¬tadas, por constituir serviço público, go¬zam de imunidade tributária total em relação aos seus bens, rendas e serviços”.
A imunidade tributária reside em su¬pressão de competência tributária. O mesmo poder constituinte que, para ga¬rantia do federalismo, reparte o poder de instituir tributos, também, em nome dele, extrai esse poder para evitar a tributação entre as esferas de Governo e suas descentralizações imediatas, as autarquias e fundações públicas.
Não pode, destarte, o legislador ordi¬nário, invocando a natureza pública do serviço, ampliar o campo das imunida¬des tributárias, estendendo-as a ente par¬ticular, quando a Constituição não abran¬geu os seus entes paraestatais, com per¬sonalidade jurídica de Direito privado (empresa pública e sociedades de econo¬mia mista).
Por fim, seria também o caso de se imputar a pecha de inconstitucional ao § 8.º do multicitado art. 58, que dispõe:
“Compete à Justiça Federal a apreciação das controvérsias que envolvam os con¬selhos de fiscalização de profissões re¬gulamentadas, quando no exercício de serviços a eles delegados, conforme dis¬posto no caput”.
A competência: ratione personae da Justiça Federal tem previsão no art. 109 e em seus incs. I, IV, VII e VIII da Constituição Federal que estabelecem:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
1- as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de auto¬ras, rés, assistentes ou oponentes, exceto
as de falência, as de acidente de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
(…)
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públi¬cas, excluídas as contravenções e ressal¬vada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
VII – os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujei¬tos a outra jurisdição;
VIII – os mandatos de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de compe¬tência dos tribunais federais.”
Ao que parece, a disposição alhures transcrita colhe, como modelo, a norma prevista no art. 1.º, § 1.º, e art. 2.º da Lei 1.533/51, estabelecendo, indistintamen¬te, a competência da Justiça Federal para todas as lides que envolvam a atuação regulamentadora e fiscalizadora dos con¬selhos profissionais.
Não há, entretanto, base constitucional para esse tratamento jurídico. No âmbito do mandado de segurança, de fato, a competência da Justiça Federal se define pela qualificação federal da autoridade (CF, art. 109, VIII), assim entendida aquela que atua por delegação de uma autoridade federal ou quando as conse¬qüências de ordem patrimonial do ato impugnado forem suportadas pela União Federal ou por suas autarquias (Lei 1.533/ 51, art. 1.º, § 1.º, c/c o art. 2.º). Nesse caso, o preceito constitucional tem eficá¬cia contida, necessitando para sua integração de uma regra infraconstitu¬cional, que delimite o conteúdo da ex¬pressão autoridade federal. Todavia, não vale a mesma premissa para os demais incisos do art. 109 da constituição, que
constituem normas de eficácia plena. Neles, as pessoas que definem a compe¬tência da Justiça Federal, estão explicita¬mente identificadas: União Federal, autarquias, fundações e empresas públi¬cas federais.
Portanto, o alargamento da competên¬cia da Justiça Federal é, sendo os conse¬lhos profissionais pessoas jurídicas de Direito privado, visivelmente inconsti¬tucional. Por essa razão, a exceção dos feitos em processamento (CPC, art. 87), devem os novos, ajuizados após 30.06. 1998 (eficácia da Lei 9.649/98, confor¬me § 7.º do seu art. 58), ser remetidos à Justiça comum estadual, competente, re¬sidualmente, para processá-los e julgá¬-los. Os executivos fiscais, no entanto, devem ser extintos sem julgamento de mérito, por ilegitimidade passiva (CPC,
art. 267, VI), uma vez que, na conformi- dade do art. l.º da Lei 6.830/80, só são legítimos para propô-los: a União Fede¬ral, os Estados, o Distrito Federal e res¬pectivas autarquias.
A experiência mostra que as soluções casuístas para problemas circunstanciais nunca se revelaram boas alternativas. Melhor, na espécie, é mesmo não desca¬racterizar os conselhos e respeitar-se a Constituição, reafirmando-se a sua natu¬reza jurídica de Direito público, com os consectários daí decorrentes: competên¬cia tributária, imunidade e competência da Justiça Federal. Desqualificá-los, man¬tendo os privilégios das autarquias fede¬rais, é sandice.[/vc_column_text][/vc_column][vc_column width=”5/12″][mpc_grid_posts cols=”1″ gap=”0″ taxonomies=”3″ order=”DESC” items_number=”5″ layout=”style_9″ title_overflow=”true” title_font_color=”#ffffff” title_font_size=”18″ title_font_transform=”uppercase” meta_layout=”date” meta_font_color=”rgba(255,255,255,0.01)” meta_link_color=”#ffffff” meta_tax_separator=”” description_disable=”true” background_color=”rgba(255,255,255,0.01)” border_css=”border-color:rgba(0,0,2,0.01);” mpc_button__disable=”true” class=”artg”][/vc_column][/vc_row]