O PODER DO FISCO X AS GARANTIAS DO CIDADÃO-CONTRIBUINTE

O PODER DO FISCO X AS GARANTIAS DO CIDADÃO-CONTRIBUINTE
Vem Carla Nelson de Oliveira Cruz(‘)
Competência tributária da União. “Princípios vetores da tributação”, /limitações constitucionais ao poder de tributar.
CPMF.
Proclama a Carta Constitucional em vigor, em seu art. 1°, caput, que “a República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios
e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito …”. Assim, erige como sua nota mais marcante o status de Estado Democrático de Direito,
o que significa, na relação Fisco-Contribuinte, a consagração, não de um poder de tributar, mas do exercício limitado e democrático da competência tributária,
entendida esta como a faculdade deferida ao Estado para instituir tributos, dentro dos limites das garantias sociais e individuais, deferidas ao cidadão-contribuinte.
Deve, assim, o Estado Impositivo atentar para os nominados’ ‘princípios vetores da tributação” – legalidade (inclusive quando qualificada), anterioridade,
irretroatividade impositiva, igualdade, capacidade econômica, uniformidade e outros, bem como para as limitações consagradas no Texto Organizacional, quais
sejam, as imunidades, a vedação de tributo confiscatório ou proibitivo ou mesmo limitativo do tráfego de pessoas ou bens, a proibição de bis in idem, e outras, sob
pena de atuação frontalmente inconstitucional.
Entretanto, para o perfeito entendimento desse corpo de princípios e limitações, é necessário que se defina a sua posição juridicamente relevante na Constituição.
É que, consubstanciando um Estatuto de Direitos e Garantias do cidadão-contribuinte, devem ser observados não somente pelo legislador tributário infraconstitucional,
mas também pelo constituinte derivado, já que se subsumem em cláusulas pétreas, na forma preconizada no art. 60, § 4°, IV, que dita:
(*) Juíza Federal Substituta da 9″ Vara da Seção Judiciária do Distrito Federal.
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Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 8, n. 4, out./dez. 1996.
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“Art. 60 .. § 4°. Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
IV -os direitos e garantias individuais”.
Com efeito, a Constituição prescreve em seu art. 5°, § 2°, que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não incluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, denotando a coexistência em nosso ordenamento, de princípios explícitos e implícitos, que se situam no mesmo plano jurídico. No caso dos direitos e garantias do cidadão-contribuinte, a previsão é expressa, não ensejando qualquer dúvida acerca da sua sobreposição constitucional, enquanto reserva material absoluta de reforma constitucional. Nesse sentido, em decisão lapidar, o STF já firmou sua orientação no sentido da intangibilidade dos direitos e garantias do cidadão, em relação à competência tributária, ao apreciar a previsão contida no § 2° do art. 2° da Emenda Constitucional n. 03/93, que afastou a aplicação do princípio da anterioridade, na exigência do Imposto sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira -IPMF. Eis a ementa:
Direito Constitucional e Tributário. Ação direta de inconstitucionalidade de Emenda Constitucional e de lei complementar. IPMF. Imposto Provisório sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira -IPMF.
Artigos 5°, § 2°, 60, § 4°, incisos I e IV, 150, incisos m, b, e VI, a, b, ce d, da Constituição Federal.
I -Uma Emenda Constitucional, emanada, portanto, de Constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional, pelo Supremo Tribunal Federal, cuja função precípua é de guarda da Constituição (art. 102, I, a, da CF).
11 -A Emenda Constitucional n. 3, de 17/3/1993, que, no art. 2°, autorizou a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, ao dispor, no § 2° desse dispositivo, que quanto a tal tributo, não se aplica “o art. 150, m, b e VI”, da Constituição, porque, desse modo, violou os seguintes princípios e nornas imutáveis (somente eles, não outros):
1° -o princípio da anterioridade, que é garantia individual do contribuinte (arts. SO, § 2°,60, § 4°, inciso IV, e 150, m, b, da Constituição);
2° -o princípio da imunidade tributária recíproca (que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios a instituição de impostos
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Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 8, n. 4, out./dez. 1996.
Doutrina
tos sobre o patrimônio, rendas ou serviços uns dos outros) e que é garantia da Federação (arts. 60, § 4°, inciso I, e 150, VI, a, da CF); 3° -a norma que, estabelecendo outras imunidades, impede a criação de impostos (art. 150, VI) sobre:
b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos
da lei; e d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão. III -Em conseqüência, é inconstitucional, também, a Lei Complementar
n. 77, de 13/711993, sem redução de textos, nos pontos em que determinou a incidência do tributo no mesmo ano (art. 28) e deixou de reconhecer as imunidades previstas no art. 150, VI, a, b, c e d, da CF (arts. 3°,4° e 8° do mesmo diploma, LC n. 77/93).
IV -Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente, em parte, para tais fins, por maioria, nos termos do voto do Relator, mantida, com relação a todos os contribuintes, em caráter definitivo, a medida cautelar, que suspendera a cobrança do tributo no ano de 1993.
Tal questão, entretanto, renova-se com o advento da Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Crédito e Direitos de Natureza Financeira. De fato, o recurso à criação desmesurada de novas fontes de custeio de que tradicionalmente se valem nossas autoridades administrativas para equacionar os seus problemas de caixa, vai exigir, mais uma vez, em face da novel emenda constitucional, que adita o art. 74 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a oportuna intervenção dos nossos juízes e tribunais, na condição de órgãos instituídos pelo Poder Constituinte como guardiões da Carta, circunstância que lhes impõe obrigações, dentre as quais se inclui o controle das ressalvas pétreas.
Efetivamente, a redação da reforma que se avizinha, demonstra a renitência da conduta do Fisco Nacional e reafirma o “pouco caso” do Estado brasileiro, no que pertine aos direitos e garantias do cidadão-contribuinte, já que traz para a unidade da Constituição preceitos que atentam contra a imunidade prevista no § 5° do art. 153, a garantia da forma qualificada da lei complementar e as limitações de vedação da técnica impositiva de cumulatividade e da ocorrência de bis in idem, todos com assento no inciso I do art. 154.
Estabelece, a esse respeito, o novo dispositivo:
“Art. 74. A União poderá instituir contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira.
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Revista do Tribunal Regional Federal 1ª Região, Brasília, v. 8, n. 4, out./dez. 1996.
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§ 2″. À contribuição de que trata este artigo não se aplica o disposto nos arts. ]53, § 5°, e ]54, I, da Constituição.”
o mencionado § 5° do art. ]53 da Lex Magna consagra a imunidade do ouro, como ativo financeiro, proibindo a incidência de outras imposições sobre o mesmo, à única exceção do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários -IOF, devido na operação de origem. A opção constituinte, nesse caso, é clara -não faculta outras incidências sobre as operações com ouro -dirigindo-se, exatamente, ao legislador das tributações residuais, como é a CPMF, o qual está, portanto, proibido de imiscuir-se na esfera dessa hipótese de incidência.
As imunidades são, consoante antes visto, essencialmente, garantias do cidadão-contribuinte, e, sob essa qualificação, reitero, não podem ser olvidadas mesmo pelo constituinte derivado, sem prejuízo da infringência do inciso IV do § 4° do art. 60 do Texto Constitucional. Assim, afirmo a sua superposição constitucional, como norma de estrutura, a qual define Paulo de Barros Carvalho, como: ” … a classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas’ ,.(I)
Quanto às demais garantias repelidas na Emenda, estas têm previsão no inciso I do art. 154 da Constituição, que prevê:
“Art. ]54. A União poderá instituir:
I -mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;”
Trata-se das vedações estabelecidas em defesa da rigidez da composição constitucional das rendas tributárias, como instrumentos de preservação da excepcionalidade da competência residual, que, nesse contexto normativo, somente pode ser veiculada por lei complementar que observe a técnica da não cumulatividade e a proibição de repetição de imposto ou contribuição já configurado no sistema constitucional (§ 4° do art. 195).
Embora seja verdadeira a premissa de que as emendas constitucionais, no pIano hierárquico-normativo, agregam-se à Constituição, sem dela se desigualarem, não podem, como previamente afirmado, fazer tábula rasa das cogentes cláusulas pétreas. Assim sendo, há juridicidade na assertiva de que, mesmo possuindo o constituinte derivado legitimação para ampliar as imposições tributárias, não pode, ao autorizar a instituição dessas novas exações, facultar que o ente compe-
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Doutrina
tente o faça em prejuízo das garantias que preservam a competência residual, como, presentemente, se verifica no teor do § 2° do art. 74 do ADCT, a ser introduzido no bojo constitucional.
Aliás, nesse mesmo sentido, sinaliza a própria literalidade do texto da Emenda, que, ao versar sobre o regime da nova contribuição, ressalvou, expressamente, a não adoção das normas do art. 154, inciso I, demonstrando que, apesar de admitir sua natureza residual, não se lhe deveria aplicar a disciplina do referido dispositivo.
Não obstante o entendimento pessoal nessa direção, favoravelmente à existência de uma garantia do contribuinte a um rol numerus clausus de impostos e contribuições, somente ampliável dentro das fronteiras da residualidade, registre-se a posição contrária do STF, com base na posição da nova regra de incidência em norma de status constitucional, ilustrada no seguinte trecho do voto proferido pelo Ministro Sydney Sanches, como Relator, na ADIn n. 939-DF, litteris:
“Cumpre ser enfatizado que a instituição do IPMF não se deu com base na competência tributária residual da União nos termos do art. 154, inciso I, da Carta de 1988, mas sim, com supedâneo na Emenda Constitucional n. 3, de 1993.
Ressalte-se que, obviamente, o novo imposto, discriminado por norma constitucional derivada, não precisa ser não-cumulativo, nem ter fato gerador ou base de cálculo distintos dos impostos que já eram previstos no texto constitucional original.”
Ao final, diante das regras contidas nos parágrafos do art. 74, é de se observar que a lei integradora do preceito constitucional, que, na nossa visão, deve ser complementar, há de consignar a alíquota de vinte centésimos por cento (§ 1°); a delegação ao Poder Executivo para reduzi-la ou restabelecê-Ia, total ou parcialmente, nos limites nela fixados (§ 1°); a afetação de sua receita à Fundação Nacional de Saúde, para financiamento de ações e serviços de saúde (§ 3°); e a vigência temporária da exação -prazo não superior a um ano (§ 4°).
Com essas considerações, resta-nos lamentar a renovação de mais um tributo “provisório”, que, a prevalecer a cultura do Estado brasileiro, em dissonância com os ditames democráticos da Constituição, continuará sendo lançado para robustecer as finanças públicas, sempre que novas necessidades o justifiquem, a despeito dos limites de capacidade contributiva do povo brasileiro.
Aliás, para este, o capítulo constitucional do Sistema Tributário Nacional é uma caixa de Pandora, considerando-se o que dele o Governo tem conseguido extrair.
Nota:
I-Carvalho. Paulo de Barros -Curso de Direito Tributário, 6′ ed., Saraiva, p. 117
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