Conselhos Profissionais: Os Vícios da Lei 9.64…

Conselhos Profissionais: Os Vícios da Lei 9.649, de 1998
Eustáquio Silveira Juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Coordenador do Núcleo de Preparação e Aperfeiçoamento de Magistra¬dos Federais. Professor da Escola Superior de Advocacia do DF.
Vera Carla Nelson de Oliveira Cruz
Juíza Federal. Professora de Direito Tributário.

{ Introdução
Após sucessivas reedições, à medida provisória que dispunha sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios foi convertida na Lei 9.649, de 27 de maio de 1998, mantendo, em seu bojo, para nossa perplexidade, a privatização dos serviços de fiscalização das profissões regulamentadas.
Os serviços de fiscalizações de profissões regulamentadas serão exercidos em caráter privado, por delegação do poder público, mediante autorização legislativa.
§ 1 º A organização, a estrutura e o funcionamento dos conselhos de fiscalização de profissões regulamentadas serão disciplinados mediante decisão do plenário do Conselho Federal da respectiva profissão, garantindo-se que na composição deste estejam representados todos seus conselhos regionais.

§ 2º. Os conselhos de fiscalização de profissões regulamenta¬das, dotadas de personalidade jurídica de direito privado, não manterão com os órgãos da Administração Pública qualquer vínculo funcional ou hierárquico. Com essa disciplina, flagrantemente inconstitucional, desqualificam-se os entes corporativos. Estes, que, na exegese do STF , sempre foram considerados autarquias, são expungidos da Administração Pública Federal, como, se o legislador, a pre-texto de regulamenta-los, pudesse modificar sua própria natureza jurídiça.
A norma é um contra-senso. De um lado, afirma que os entes são dotados de personalidade jurídica de direito privado, que não têm vínculo com a administração pública, mas de outro, confere-lhes atributos inerentes à administração publica.

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2. Poder de polícia

O poder de fiscalizar emana do poder de polícia. Pressupõe, portanto, a existência de atributos específicos deste, isto é, importa em restrições de direitos individuais em favor da coletividade (CTN, art. 7) requerendo, para o seu exercício, dis-cricionariedade, coercibilidade e auto-executoriedade.
Assim sendo, a regra em comento não teve apenas o condão .de negar a qualidade de autarquia aos conselhos pro-fissionais, mas, sem .se deter aí, permitiu, inusitadamente, que particulares possam Ingressar em estabelecimentos e interditá-los, consultar-lhes os livros, proibir profissionais de exercer sua profissão, aplicar-Ihes sanção, como se os referidos atributos pudessem,porque o legislador o disse, ser delegados.
A Constituição Federal, versando sobre a matéria, especifica a competência legislativa da União Federal para tratar do tema. (CF, art. 22, XVI), a capacidade tributé1ria dos entes cororatlvos (CF, art. 149) e a atuação reguladora do poder de policia do Estado (CF, art. 170).

De seu plano, o CTN dota de oficialidade o poder de polí¬cia (CTN, art.78, parágrafo único), estatuindo que somente as pessoas jurídicas de direito público podem ser titulares de capacidade tributária ativa (CTN, art. 7º, c/c o art. 119).

É de se concluir, portanto, que, embora a União Federal tenha competência/legislativa para disciplinar o exercício das profissões, não pode usar desta função para delegar o que não pode. Como afirma José Cretella Júnior, “é difícil definir a policia. Podemos encontrar na definição de polícia vários elementos. Um é o Estado. Só Estado é detentor do poder de polícia, só o Estado organiza a polícia. O poder de polícia é, pois, Indelegável, Intransferível”. (Manual de Direito Administrativo, 5ª ed., p. 262-263).

Ano 17, n. 59, out-dez, 1998

Súmula 545. Preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu.
3. Competência tributária

Mas se, apesar disso, prevalecer o entendimento de que o poder de polícia pode ser delegado em favor de pessoas jurídicas de direito privado, os §§ 4º, 6º e 8º do dispositivo legal em foco devem ser considerados inconstitucionais.
Ar!. 119. Sujeito ativo da obrigação tributária é a pessoa jurídica de direito público titular da competência para exigir o seu cumprimento.
Sobre esse tema, já se afirmou, equivocadamente, que o valor exigido pelos conselhos é preço público. Mas essa posição é facilmente refutável, já que existe compulsoriedade na sujeição do profissional ao conselho respectivo, nota característica da prestação de serviços que autoriza a cobrança de tributos, consoante o STF: o § 4º preceitua:

Os conselhos de fiscalização das profissões regulamentadas são autorizados a fixar, cobrar e executar as contribuições anuais devidas por pessoas f1sicas ou jurídicas, bem como preços de serviços e multas, que constituirão receitas próprias, considerando-se título executivo extrajudicial a certidão relativa aos créditos decorrentes

O STF, no RE 138.284-8/CE e na ADC-1/DF, reconheceu a natureza tributária das contribuições parafiscais, referendando a vontade constituinte de aplicar os princípios tributários e as normas gerais de direito tributário a essas imposições (CF, art. 149).

Assim ,sendo, é absolutamente inconstitucional preceito de lei que, em prejuízo da referida norma constitucional,. Autoriza os conselhos a fixar.o valor de suas contribuições, violando, o.princípio da legalidade (CF, art. 150, I), bem como que Ihes , permita cobrá-Ias, ao arrepio das regras gerais constantes dos arts. 7º e 119 do CTN, que reservam o exercício da capacidade, tributária- ativa às pessoas jurídicas de direito público, in verbis:

Art. 7º. A competência tributária é indelegável, salvo atribui¬ções das funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária, conferida por uma pessoa jurídica de direito público a outra, nos termos do § 3º do art. 18 da Constituição.

4.,lmunidade tributária

” Seria, ainda, inconstitucional o § 6º do art. 58, que preconiza: “os conselhos de”fiscalização de profissões regulamentadas, por constituir serviço público, gozam de imunidade tributária total em relação aos seus bens, rendas e serviços”.

‘A imunidade tributária reside em supressão de competência tributária. O mesmo poder constituinte que, para garantia do federalismo, reparte o poder de instituir tributos, também, em nome dele, extrai esse poder para evitar a tributação entre as esferas de governo e suas descentralizações imediatas, as autarquias e fundações públicas.

Não pode, dessarte, o legislador ordinário, invocando a natureza pública do serviço, ampliar o campo das imunidades tributárias, estendendo-as a ente particular, quando a Constituição não abrangeu os seus entes paraestatais, com personalidade jurídica de direito privado (empresa publica e sociedades de economia mista).

5. Processo e competência
Por fim seria também o caso de se imputar a pecha de inconstitucional ao § 8º do multicitado art. 58, que dispõe:
“Compete à Justiça Federal a apreciação das controvérsias que envolvam os conselhos de fiscalização de profissões regu-lamentadas, quando no exercício de serviços a eles delegados, conforme disposto no caput.”
A competência ratione personae da Justiça Federal tem previsão no art. 109 e em seus .incisos I, IV, VII e VIII da Cons-tituição Federal, que estabelecem:
Art. 100. Aos juízes federais compele processar e julgar:
I – as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência. as de acidente de trabalho e as sujeitas pela Justiça Eleitoral e a Justiça do Trabalho;
IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em de-trimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as con-travenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral;
VII – os habeas corpus, em matéria criminal de sua competência ou quando o constrangimento provier de autoridade cujos atos não estejam diretamente sujeitos a outra jurisdição.
VIII – os mandados de segurança e os habeas data contra ato de autoridade federal, excetuados os casos de competência dos tribunais federais.
Ao que parece, a disposição alhures transcrita colhe, como modelo, a norma prevista no art. 1 º, § 1 º, e art. 2º da Lei 1.533/51, estabelecendo, indistintamente, a competência da Justiça Federal para todas as lides que envolvam a atuação regulamentadora e fiscalizadora dos conselhos profissionais.
Não há, entretanto, base constitucional para esse tratamento jurídico. No âmbito do mandado de segurança, de fato, a competência da Justiça Federal se define pela qualificação federal da autoridade (CF, art. 109, VIII), assim entendida aquela que atua por delegação de uma autoridade federal ou quando as conseqüências de ordem patrimonial do ato impugnado forem suportadas pela União Federal ou por suas autarquias (Lei 1.533/51, art. 1º, § 1º, c/c o art. 2º). Nesse caso, o preceito constitucional tem eficácia contida, necessitando para sua integração de uma regra ínfraconstitucional, que delimite o conteúdo da expressão autoridade federal. Todavia, não vale a mesma premissa para os demais incisos do art. 109 da Constituição, que constituem normas de eficácia plena. Neles, as pessoas que definem a competência da Justiça Federal, estão explicitamente identificadas: União Federal, autarquias, fundações e empresas públicas federais.
Portanto, o alargamento da competência da Justiça Federal é, sendo os conselhos profissionais pessoas jurídicas de direito privado, visivelmente inconstitucional. Por essa razão, à exceção dos feitos em processamento (CPC, art. 87), devem os novos, ajuizados após 30 de junho de 1998 (eficácia da Lei 9.649/98, conforme § 7º do seu art. 58), ser remetidos à Justiça Comum Estadual, competente, residualmente, para processá-Ios e julgá-Ios. Os executivos fiscais, no entanto, devem ser extintos sem julgamento de mérito, por ilegitimidade passiva (CPC, art. 267, VI), uma vez que, na conformidade do art. 1 º da Lei 6.830/80, só são legítimos para propô-Ios: a União Fe¬deral, os Estados, o Distrito Federal e respectivas autarquias.
A experiência mostra que as soluções casuístas para problemas circunstanciais nunca se revelaram boas alternativas. Melhor, na espécie, é mesmo não descaracterizar os conselhos e respeitar-se a Constituição, reafirmando-se a sua natureza jurídica de direito público, com os consectários daí decorrentes: competência tributária, imunidade e competência da Justiça Federal. Desqualificá-Ios, mantendo os privilégios das autarquias federais, é sandice.

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